Sunday, February 8, 2009

O Espaço ou a Solidão (3) o Paraíso perdido


Pessoa está só por se ter afastado de um mundo de ventura a que não conseguirá novamente voltar.

A presentificação do paraíso que perdeu desdobra-se em dois grupos de imagens: o conjunto dos espaços que recordam um mundo feliz e um outro que objectiva a limitação de um presente triste.

Depois de perdido o paraíso da alma, o poeta sente-se deslocado e situado num mundo que não é para ele. Foi « amado em efígie num país para além dos sonhos » e agora confessa-se « desterrado da Pátria antiquíssima da minha Crença ». Na passividade da aceitação por ele programada, mede-se como o estrangeiro que é, como « deidade exilada », ente « exilado das supernas luzes ». Deportado, por imposição dos deuses, arrasta, como condenação, o simples desejo de felicidade a que chama erro :Aqui, neste misérrimo destêrro

Onde nem desterrado estou, habito,

Fiel, sem que queira, àquele antigo êrro

Pelo qual sou proscrito

[Reis, 419]

Também Pessoa autónimo é um deportado do sonho, da esperança, do amor e da glória, “conjunto absurdo” que ele entrevê sempre onde quer que passe. Na prisão em que se acha não é mais do que o exilado de uma outra vida qua pensa voltar a encontrar :

Aqui onde se espera

(…) Isso que outrora era,

(…) Aqui, aqui estarei

(…) Como no exilio um rei.

[Cancioneiro]

E Álvaro de Campos, “patriota transitório duma mesma pátria incerta » que todos nós integramos, não deixa de se sentir estrangeiro num mundo de estrangeiros :

O florir do encontro casual

Dos que hão sempre de ficar estranhos …

O único olhar sem interêsse recebido no acaso

Da estrangeira rápida …

[Campos, 454]

« Estrangeiro aqui como em toda a parte » (Campos), viajando muitas vezes com a mesma passageira num comboio suburbano mas cruzando-se somente com ela, vendo a rua « com uma nitidez absoluta » – lojas, passeios, carros que passam, « entes vivos vestidos que se cruzam », « cães que também existem » – e pesando-lhe isto tudo « como uma codenação ao degredo » afirma-se crente numa outra vida que ressalto no idealismo platónico e ocultista da obra lírica e épica de Pessoa ortónimo.

Lembra-se a attitude paralela em vivência e expressão de um outro deslocado que não foi alheio a Fernando Pessoa :

"À une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil majestueuse,

Une femme passa, d’une main fastueuse

Soulevant, balançant le feston et l’ourlet ;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,

Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan,

La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair … puis la nuit ! – Fugitive beauté

Dont le regard m’a fait soudainement renaître

Ne te verrai-je plus que dans l’éternité ?

Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard ! jamais peut-être !

Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !"

[Charles Baudelaire, Les fleurs du mal]

A simbologia mítica de que a Excalibr, o Sul sidério, Galaaz, a Rosa, o Templo, o Pai Rosaeacruz, para só citar alguns exemplos, são elementos constitutivos, é uma das técnicas de recuperação do paraíso da alma, usadas por Pessoa.

A essa simbologia e com a mesma finalidade, vem acrescentar-se o ouro, a cinza do poente, a Hora que « sabe a ter sido », o « porto infinito » da poesia paùlista ou ainda a persistência com que quase abusa das palavra « antigo », « antiquíssimos » e « longinquo ».

As referencias feitas acima servem-nos como o trampolim para estabelecer o contraste entre o mundo de um além de « antes de tempo e espaço e vida e ser » e o mundo do concreto em que o poeta vive. Para a definição do seu momento actual concorrem as imagens de espaço : desterro, exílio, prisão, cela – « Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela ». De facto, o tamanho varia : tanto pode ser a vastidão que comporta os astros – « Vastidão vã que finge de infinito / Como se o infinito se pudesse ver ! » – como as reduzidas e aviltantes dimensões duma aldeola (Campos) ou as de um « largo onde ladram cães ». E levantada até à tragédia a voz de Campos, numa alternância de concreto e abstracto, grita qual era a mais torturante prisão para o poeta :

Cárcere do Ser, não há libertação de ti ?

Cárcere de pensar, não ha libertação de ti ?

A obsessão do paraíso perdido vai colocar-nos no espaço do lar também perdido.

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

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