Tuesday, February 10, 2009

O Espaço ou a Solidão (5) a felicidade negativa


A sua vida é razão de infelicidade – « A vida ali deve ser feliz, só porque não é minha » (Campos, 463) – e o lugar onde uma ventura qualquer se possa encontrar está num jardim que nunca lhe pertence – « Gozarei só pela aragem / As flores de outro jardim » (Inéd., 656) – no espaço de uma quinta a que se junta a sonoridade agradável da água corrente – « Nos tanques da quinta de outrém / É que gorgoleja bem » (Inéd., 710) – no oásis aue aparece no deserto que nunca é o dele – « Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado » (Campos, 478) – na extensão que se situa para além do muro, o sinal da proibição que lhe faz ter a consciência do que lhe é vedado. Para além do muro, a noite de S. João no quintal dos outros, a paz do «olival alheio », tudo o que ele quer o pensa.

Para aquém do muro, os desejos da cortina espessa das montanhas o lado desagradável da vida – « Do lado de cá de todos os montes, é que a vida é sempre feia » (Pessoa, 544) – e só do lado de lá « o algures onde os poentes são », fundindo-se essa terra desejada com a terra perdida – « Eu fui feliz para além de montes outrora … » (Pessoa, 544).

Pessoa, sempre num estado de insatisfação por deslocação de qualquer espaço ou movimento físico ou psíquico que lhe permitam um pouco de conforto, sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de um muro sem porta, sempre o tímido, o da filosofia solitária a construir e a remover mundos na sua « trapeira de falhado », na mansarda donde não sairá nunca, tem a éintuição esguia de outras terras », entrevê em longe e bruma o paraíso por achar, a ilha edénica de um mar do Pacífico onde « a vida sabe a amor e a sul » (Carta a Armando Côrtes-Rodrigues CACR). É uma espécie de percepção duvidosa que lhe põe a vida « feita em trapos » :

Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrena do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

[Cancioneiro, 150]

A « Ilha longínqua, aquela que V. e eu sei e nenhum de nós sabe » (CACR) tem o valor de um símbolo. O poeta não a objectiva, somente a situa algures, nos mares do Pacífico e perde-a nima imensidade que por ser indefinida é infinita. É que o poeta dista indefinidamente de si próprio. No diálogo constante que trava com a alma, confessa a cisão de ele com ele : « … nunca somos um só. Aquilo que eu não te digo, apesar de habitarmos juntos este palácio e juntos pensarmos neste jardim. Segredo-o a mim quando estou mais só e nem ergo a voz, para que me não ouça não sei quem que me não pode ouvir » (Textos Filosóficos). Não se apreende na sua essencialidade, não se unifica, « a incompatibilidade é sentida por ele, dentro dele » (CACR) e como a ilha está inscrita nele nunca a ela aportará :

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não.
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

[Cancioneiro, 150]

É neste momento que se confundem os dois mundos, interior e exterior, e que se mede a tragédia de quem se procura e não se encontra.

Se bem que Ricardo Reis secunde a certeza de Pessoa ortónimo – « Façamos de nós mesmos o retiro / Onde esconder-nos, tímidos do insulto / Do tumulto do mundo » (Reis, 408) – é dentro de si que começa o desencontro porque ele não sabe « quando levanta um braço, porque coisas do além levanta esse braço » (Textos Filosóficos).

Furtando-se-lhe dolorosamente o conhecimento do ser e negando-se-lhe, assim, a felicidade, o poeta fica irremediavelmente solitário no espaço enorme da sua insuficiência, nada mais pedindo à vida « do que ser o seu vizinho » (Cancioneiro, 187).

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

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