Monday, February 9, 2009

O Espaço ou a Solidão (4) o Lar perdido


Pessoa perdeu a casa da infância, perdeu o paraíso do nõa pensar e da inconsciência. Mas a casa natal está fisicamente inscrita nele porque agora ele é o enverhecimento e a ruína dessa casa :

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes …

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos …

[Campos, 473]

Todos os que povoam esse lar, espaço, onde ele integra as recordações agradáveis e os sonhos. É nessa casa da infância que « s’établissent les valeurs de songe, dernières valeurs qui demeurent quand la maison n’est plus. » (Gaston Bachelard, La poétique de l’espace) ; nessa casa « em que festejavam o dia dos seus anos ».:

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado

[Campos, 473]

Lhe chegam à memória no momento da raiva que tem de si próprio por não ter sabido conservar esse passado. Raiva porque a casa chorada era o canto do mundo onde ele podia agora ser feliz – sempre uma possível realização dentro de uma coisa que não existe. Esse lar é o pretexto para os desejos dos seus sonhos de paz e uma região longinqua, uma região-recordação que tem o valor da zona de protecção de que o poeta a cada momento precisa. Ele está a habitá-la em sonho e a casa que nos mostra é a fixação de uma infância que subitamente parou para deixar ao poeta só um pouco de loucura (« Quand, dans la nouvelle maison, reviennent les souvenirs des anciennes demeures, nous allons au pays de l’Enfance Immobile, immobile comme l’Immémorial » G. Bachelard, id.).:

Pobre velha casa da minha infância perdida !

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto !

Que é do teu menino ? Está maluco.

(…) Quem de quem fui ? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
[Campos, 490]

Na posse da loucura que traz « exactamente na cabeça », ele será sempre o arredado, em desacerto permanente com ele, com os outros e com a vida que é um espaço fechado, só definível por paradoxos e inexactidões :

Sou naquele salão como qualquer pessoa

Mas o sobrado é côncavo e as portas não acertam

A tristeza das bandeiras crucificadas nos entrevãos das portas

É uma tristeza feita de silêncio desnivelada

Pelas janelas reticuladas entra a luz quando é dia

Que entorpece os vidros das bandeiras e recolhe a recontos montões de negrume

Correm às vezes frios ventosos pelos extensos corredores

Mas há cheiro a vernizes velhos e estalados nos recantos dos salões

E tudo é dolorido neste solar de verlharias.

[Pacheco, 542]

Nesta sucessão de imagens exemplificativas, há uma visão da vida limitada que o avisado Ricardo Reis subscreve :

(…) Usaremos a existência

Como a vila que os deuses nos concedem.

[Reis, 325]

Mesmo querendo usufruir, epicuristicamente, do tempo que lhe é dado para passar neste planeta, ele fecha-o num espaço, que, se bem que agradável, não deixa de fazer ressaltar a existência como uma prisão : a vila tem paredes e muros e grades …
Pensando e vivendo à sombra da nostalgia de um paraós perdido, não poderá o poeta voltar a encontrá-lo ? Não, e esta é uma trágica cláusula do seu contrato de inadaptado. Proscrito de um deus que lhe deu uma vida de que depois se esqueceu, a felicidade só poderá ser para os outros, por quem, aliás, nutre uma espécie de empatia. A contemplação dos homens oferece-lhe moldes concretos em que se vasa a sua sensibilidade emotiva ao pensar no que possui ou não possui. Estabelece-se uma correspondência entre o poeta e os seus semelhantes – estes são a projecçãõ, muitas vezes, mesmo, um complemento de dramatismo da consciência do poeta.
A felicidade, dizia, não é para ele. Se a vislumbra em sonho, logo o seu eu pensante e consciente, interferindo no processo onírico, a destrói. « Coração oposto ao mundo » do lar que nunca terá, a ventura só existe para os outros, onde ele não está, na casa onde ele não mora – sempre o sentimento em negativo daquilo que não tem –

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre !

[Campos, 491]

Esta oposição repete-se constantemente no poeta ortónimo e heterónimo e se bem que a felicidade dos outros resida mais no que ele lhe atribui em pensamento do que na ventura real deles, a repetição marca a obsessão e a convicção de que para ele nada pode existir de agradável. Ele é o eterno divorciado da realidade feliz : « So tenho por consolação / Que os olhos se me vão acostumando / À escuridão” (Inéd., 553) .

« Outros terão / Um lar … » (Inéd., 553) qualquer processo de construção de vida « defronte » da abulia e do tédio do poeta. Ele instala-se na sua solidão e chega ao paradoxo de afirmar que « Até amaria o lar, desde que o não tivesse » (Campos, 476) – confissão de adesão a uma felicidade negativa.

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

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