Pessoa projecta-se todo na vastidão exterior.
O heterónimo Caeiro é o homem da terra, é o guardador de rebanhos que quando se estende ao comprido na erva, sente que se deita na realidade. O fim último da metafísica do Caeiro sem metafísica é o aniquilamento da pessoa humana e, portanto, do pensamento, para existir só como mais um ser – pedra, regato, ovelha ou flor. Na pretensa fusão total com o univreso-natureza, até a sua voz com ele se irmana – « era como a voz da terra que é tudo e ninguém » (Álvaro de Campos, Notas para a recordação do meu mestre Caeiro). Não é nesta mistificação que vai encontrar solução para o seu drama. Se é ao espaço totalmente aberto que se entrega é porque tem pretensões – ele sabe que inúteis ! – a ser só esse fora que poetiza para minorar a sua trituração mental e para apagar a tortura de dentro. O fora élhe ditado por um dentro em que não encontra explicação nem razão para a vida.
Assim também em Reis, se bem que a natureza exterior na sua poética seja outra. O lugar que o heterónimo horaciano escolhe não é já pela encosta abaixo ; é a calma do « pouco espaço que é própria dos pincaros » (Álvaro de Campos, Nota preliminar às Odes de Ricardo Reis) ou a quietude da beira-rio simbolos do « antes sossego que fruição » a que quer aderir. Natureza plácida e fria procurada em fundo e forma, a altura ou a margem em que gostaria de se descobrir não as encontrará nunca porque a ataraxia a que é preciso ser fiel para ali se achar, não passa de outro sofisma, conducente, mais uma vez, ao « vácuo absurdo da existência » (Fernando Pessoa, António Botto e o ideal estético em Portugal) ?
É ainda no espaço aberto, continente de todo o processo de energia, que Campos pretende viver. É aos mares e às cidades, num abraço fraterno de civilização e máquinas, numa aceitação indescriminada de qualquer forma de vida, é ao mundo todo « na própria pele sentido », à máxima intensidade da sensação de todas as coisas, que ele se quer dar. A Campos tenta-o outra espécie de fora – o universo do social e do cosmopolita – mas a causa é a mesma : a vida do pensamento precisa de formar para si outro modo de fingir e espraia-se numa nova estruturação mental que desagua no absurdo.
Se em Caeiro e em Reis, o poeta falha por se despojar do humano, aqui falha por afundar a pique na vastidão do humano e o homem que se quis ponto de convergência de toda a realidade, que foi a insubstancialidade do que é insubstancial, depressa se desmascara : toda a actividade pressuposta nos gritos estridentes de algumas das suas odes, vai soçobrar no cansaço, na desilusão e na desagregação.
E assim, Campos é fiel a si próprio, a Reis, a Caeiro e a Pessoa ele mesmo.
Também este, na paisagem do crepúsculo, no ar de cada instante, no « universo da rua dos Douradores » ou na indeterminação de lugares se desobra ao sabor de brisas e marés não encontrando no exterior a unidade que não encontra dentro de si.
De carácter contemplativo, liberto das realidades próximas, Pessoa detém-se a procurar, num espaço qualquer, uma reposta para os seus problemas e a sua inteligência passa-o para o lado de lá do positivio. Na cisão com a realidade palpável, o poeta vai ainda encontrar uma forma nova de solidão no retorno ao infinito pelos ciclos de consciência englobante – várias vezes a sua poesia nos deixa supor um eu do eu, acima desse mais outro e assim sucessivamente :
« Não sou eu quem descrevo. Eu sou a teia / E oculta mão colora alguém em mim. ; Sinto que sou ninguém salvo uma sombra / De um vulto que não vejo … ; Além da minha alma, que outra alma há na minha? ; De quem é o olhar / Que espreita por meus olhos ? ; De onde é que estão olhando para mim ? / Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim ? / Quem espreita de tudo ? ; Não meu, não meu é quanto escrevo / A quem o devo ? / De quem sou o arauto nado ? (Cancioneiro) ;
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos ? … (Campos) ; Anjos ou deuses, sempre nós tivemos, / A visão perturbada de que acima / De nós e compelindo-nos / Agem outras presenças. (Reis) ; Meu ser existe sem que seja meu / É anônimo persiste .. (Inédito) »
A sua poesia sugere antes sucessivos graus (e não fases) do eu, que iriam desde a personalidade concreta em dado momento até formas talvez descarnadas, e graduadas em série indefinida, de consciência cósmica mais ou menos contemplativa que ele designa, por vezes, como os deuses.
No devassar dos espaços, rompe com a vida imediata, vai cavando um fosso entre ele e essa vida. A contemplação da grandeza que tem em si, põe-no perante um mundo que traz a marca de um infinito e é assim que ele se encontra cada vez mais só. « Eu desejaria viver ou ser adentro de mim como vivem ou são os espaços » (Pacheco). E os espaços interior e exterior crescem e as duas imensidades tocam-se e confundem-se. É a solidão.
Até o processo estilístico do autor a vai revelar. Por trás das palavras está uma concepção do mundo, e, para Pessoa, a solidão entra de tal modo no âmago desse mundo que o sistema de vocábulos que integram a sua imagística do espaço é formado, predominantemente, por substantives, é o elemento estilístico menos revelador de movimentos emocionais. O uso do adjectivo, ingrediente de poder diferenciativo, poderia levar-nos a estabelecer uma escala de valores de aproximação ou afastamento no espaço, e assim, a determinar em momentos diferentes no tempo, momentos diferentes na solidão. Mas se o poeta atravessa a vida a esconder-se atrás dos seus óculos de míope e a entrincheirar-se nas suas variadas mistificações, por que razão não haveria de se esconder também na opacidade dos substantivos da sua poesia ? No entanto, ele não se esconde, antes se revela, nessa substantivação com pouca gradação adjectiva : é que o espaço imenso está sempre nele porque a solidão é total e inconscientemente surgo só o substantivo, palavra objectiva, metáfora a suscitar o real.
Debaixo da pluralidade de substantivos que se desdobram em imagens obsessivas ou em metáforas banais e que integram a sua poética de espaço aberto ou fechado, esconde-se a formulação de vários problemas que vão consolidar sempre e cada vez mais fortemente a certeza que o poeta tem de se encontrar só.
Pátria, largo, aldeola, gare, estrada, floresta, oásis, deserto, ilha, jardim, montanha, sul, lar, poltrona, muro ou porta são o disfarce da inutilidade e da aridez da vida, disfarce do mistério que para nós é a vida do concreto e do abstracto, da limitação do universo, do sentimento de passagem que o poeta tem a certas horas, da muralha da vontade impedindo realizações, da inacessibilidade a uma terra de promissão, seja ela um jardim, o quintal dos outros ou uma ilha. Toda esta problemática tem como resultante o sentimento da solidão.
[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]
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