Saturday, February 7, 2009

O Espaço ou a Solidão (2) as Ilhas do mar do sul


As ilhas do mar do sul não ficam em qualquer ponto do Pacifico com longitude e latitude determinadas; o oriente não é o Oriente; “todos os portos a que cheguei” não existem em nenhuma costa; Dar-es-Salaam ou Madagascar não são lugares geográficos; os jardins com flores ou com ervas nunca viram o luz do sol; a colina do guardador de rebanhos é um acidente orográfico feito de conceito sobre conceito; a cidade persa dos jogadores de xadrez existiu sem cidadãos e sem jurisdição; a estrada que ele percorreu ainda está virgem de passos humanos. Tudo isto são lugares imprecisos que se perdem num perto ou num longe mas que rimam com vivência essencial intima. Um e outro mundo – o do espaço imaginado e o do espaço experimentado – se encorajam no seu crescimento, adquirem uma expansão cada vez maior e explicam-se mutuamente. Partindo do que pensa e sente e buscando apoio em suportes objectivos, o poeta metaforiza permanentemente e essa metaforização é fonte constante de repostas ou de caminhos para a nossa indagação.

Pessoa projecta-se todo na vastidão exterior.

O heterónimo Caeiro é o homem da terra, é o guardador de rebanhos que quando se estende ao comprido na erva, sente que se deita na realidade. O fim último da metafísica do Caeiro sem metafísica é o aniquilamento da pessoa humana e, portanto, do pensamento, para existir só como mais um ser – pedra, regato, ovelha ou flor. Na pretensa fusão total com o univreso-natureza, até a sua voz com ele se irmana – « era como a voz da terra que é tudo e ninguém » (Álvaro de Campos, Notas para a recordação do meu mestre Caeiro). Não é nesta mistificação que vai encontrar solução para o seu drama. Se é ao espaço totalmente aberto que se entrega é porque tem pretensões – ele sabe que inúteis ! – a ser só esse fora que poetiza para minorar a sua trituração mental e para apagar a tortura de dentro. O fora élhe ditado por um dentro em que não encontra explicação nem razão para a vida.

Assim também em Reis, se bem que a natureza exterior na sua poética seja outra. O lugar que o heterónimo horaciano escolhe não é já pela encosta abaixo ; é a calma do « pouco espaço que é própria dos pincaros » (Álvaro de Campos, Nota preliminar às Odes de Ricardo Reis) ou a quietude da beira-rio simbolos do « antes sossego que fruição » a que quer aderir. Natureza plácida e fria procurada em fundo e forma, a altura ou a margem em que gostaria de se descobrir não as encontrará nunca porque a ataraxia a que é preciso ser fiel para ali se achar, não passa de outro sofisma, conducente, mais uma vez, ao « vácuo absurdo da existência » (Fernando Pessoa, António Botto e o ideal estético em Portugal) ?

É ainda no espaço aberto, continente de todo o processo de energia, que Campos pretende viver. É aos mares e às cidades, num abraço fraterno de civilização e máquinas, numa aceitação indescriminada de qualquer forma de vida, é ao mundo todo « na própria pele sentido », à máxima intensidade da sensação de todas as coisas, que ele se quer dar. A Campos tenta-o outra espécie de fora – o universo do social e do cosmopolita – mas a causa é a mesma : a vida do pensamento precisa de formar para si outro modo de fingir e espraia-se numa nova estruturação mental que desagua no absurdo.

Se em Caeiro e em Reis, o poeta falha por se despojar do humano, aqui falha por afundar a pique na vastidão do humano e o homem que se quis ponto de convergência de toda a realidade, que foi a insubstancialidade do que é insubstancial, depressa se desmascara : toda a actividade pressuposta nos gritos estridentes de algumas das suas odes, vai soçobrar no cansaço, na desilusão e na desagregação.

E assim, Campos é fiel a si próprio, a Reis, a Caeiro e a Pessoa ele mesmo.

Também este, na paisagem do crepúsculo, no ar de cada instante, no « universo da rua dos Douradores » ou na indeterminação de lugares se desobra ao sabor de brisas e marés não encontrando no exterior a unidade que não encontra dentro de si.

De carácter contemplativo, liberto das realidades próximas, Pessoa detém-se a procurar, num espaço qualquer, uma reposta para os seus problemas e a sua inteligência passa-o para o lado de lá do positivio. Na cisão com a realidade palpável, o poeta vai ainda encontrar uma forma nova de solidão no retorno ao infinito pelos ciclos de consciência englobante – várias vezes a sua poesia nos deixa supor um eu do eu, acima desse mais outro e assim sucessivamente :

« Não sou eu quem descrevo. Eu sou a teia / E oculta mão colora alguém em mim. ; Sinto que sou ninguém salvo uma sombra / De um vulto que não vejo … ; Além da minha alma, que outra alma há na minha? ; De quem é o olhar / Que espreita por meus olhos ? ; De onde é que estão olhando para mim ? / Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim ? / Quem espreita de tudo ? ; Não meu, não meu é quanto escrevo / A quem o devo ? / De quem sou o arauto nado ? (Cancioneiro) ;

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos ? … (Campos) ; Anjos ou deuses, sempre nós tivemos, / A visão perturbada de que acima / De nós e compelindo-nos / Agem outras presenças. (Reis) ; Meu ser existe sem que seja meu / É anônimo persiste .. (Inédito) »

A sua poesia sugere antes sucessivos graus (e não fases) do eu, que iriam desde a personalidade concreta em dado momento até formas talvez descarnadas, e graduadas em série indefinida, de consciência cósmica mais ou menos contemplativa que ele designa, por vezes, como os deuses.

No devassar dos espaços, rompe com a vida imediata, vai cavando um fosso entre ele e essa vida. A contemplação da grandeza que tem em si, põe-no perante um mundo que traz a marca de um infinito e é assim que ele se encontra cada vez mais só. « Eu desejaria viver ou ser adentro de mim como vivem ou são os espaços » (Pacheco). E os espaços interior e exterior crescem e as duas imensidades tocam-se e confundem-se. É a solidão.

Até o processo estilístico do autor a vai revelar. Por trás das palavras está uma concepção do mundo, e, para Pessoa, a solidão entra de tal modo no âmago desse mundo que o sistema de vocábulos que integram a sua imagística do espaço é formado, predominantemente, por substantives, é o elemento estilístico menos revelador de movimentos emocionais. O uso do adjectivo, ingrediente de poder diferenciativo, poderia levar-nos a estabelecer uma escala de valores de aproximação ou afastamento no espaço, e assim, a determinar em momentos diferentes no tempo, momentos diferentes na solidão. Mas se o poeta atravessa a vida a esconder-se atrás dos seus óculos de míope e a entrincheirar-se nas suas variadas mistificações, por que razão não haveria de se esconder também na opacidade dos substantivos da sua poesia ? No entanto, ele não se esconde, antes se revela, nessa substantivação com pouca gradação adjectiva : é que o espaço imenso está sempre nele porque a solidão é total e inconscientemente surgo só o substantivo, palavra objectiva, metáfora a suscitar o real.

Debaixo da pluralidade de substantivos que se desdobram em imagens obsessivas ou em metáforas banais e que integram a sua poética de espaço aberto ou fechado, esconde-se a formulação de vários problemas que vão consolidar sempre e cada vez mais fortemente a certeza que o poeta tem de se encontrar só.

Pátria, largo, aldeola, gare, estrada, floresta, oásis, deserto, ilha, jardim, montanha, sul, lar, poltrona, muro ou porta são o disfarce da inutilidade e da aridez da vida, disfarce do mistério que para nós é a vida do concreto e do abstracto, da limitação do universo, do sentimento de passagem que o poeta tem a certas horas, da muralha da vontade impedindo realizações, da inacessibilidade a uma terra de promissão, seja ela um jardim, o quintal dos outros ou uma ilha. Toda esta problemática tem como resultante o sentimento da solidão.

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

No comments:

Post a Comment