Friday, February 20, 2009

O mal de Lisboa


“O mal de Lisboa, amigo escritor, consiste em tropeçarmos no Tejo em cada bairro da cidade como se tropeça num objecto esquecido, o Tejo que nos aparece em todos os postigos, que nos baloiça a cama, durante o sono, com o seu vai-vem de berço, o Tejo e as suas luzes nocturnas, que me magoavam os olhos quando, acompanhado o do bigodinho com mais dois ou três colegas, saía a prender comunistas de madrugada em quarteirões de que nem suspeitava e existência, arrombando portas, cambulhando até um colchão às escuras onde um vulto assustado procurava levantar-se, revistando-lhe o quarto, a sala, a casa de banho e o interior do autoclismo em busca de um feixe de armas ou de um tipografia clandestina, e partindo por fim, com a vítima a protestar inocências e a famila a berrar de dor no patamar, para um automovelzito arrumado no passeio, com um agente de boné a acender cigarrilhas lá dentro. E fosse em Campo de Ourique ou na Graça, senhor, fosse em Alvalade, na Póvoa de Santa Iria, na Amadora, em Benfica, fosse no Cais do Sodré ou bo Barreiro o Tejo lá estava, com os seus pântanos, os seus navios, as suas grazinas e a geometria dos mastros, respirando além da última e quase translúcida fieira de casas.”

[António Lobo Antunes, A Ordem Natural das Coisas]

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