Wednesday, February 11, 2009

O Espaço ou a Solidão (6) arrumar a mala


Se o poeta está só por se ter afastado do mundo de ventura que imagina, está só, também, porque rompe de viseira com a vida activa.
Possuidor de uma inteligência demasiado lucida e analítica, possuidor de uma vontade adormecida e vencida por essa inteligência que a aniquila, Pessoa será o responsável pelo afastamente da felicidade que chora ou que deseja. Mas, neste desejo, nunca está presente um autêntico movimento de alma porque o poeta tem receio da vida activa. É o eterno abúlico hiperconsciente da sua abulia pois ele sabe que a motivação última de uma opção nunca conduz ao paraíso nem a nenhuma finalidade que seja satisfatória. Ainda como abúlico, está consciente de todas as possibilidades de perda de consciência no infinito e não opta … porque é abúlico. Em toda a poesia se patenteia amplamente este lema do nunca partir para a acção e mais uma vez Pessoa se vai servir de imagens de espaço – mas agora de um espaço circunscrito a pequenas superfícies e até fechado – para nos comunicar o que não quer fazer.

Não são poucos os poemas em que Pessoa-Campos nos dá conta do seu cansaço e da sua abulia ; Reis e Caeiro também vão deixar a descoberto o mesmo princípio apesar da tentativa de disfarce. Disfarçado em aceitação em Reis e em simplicidade em Caeiro, o ideal da inacção é uma constante da obra do poeta. Pessoa fecha os olhos e entrega-se sem condições ao dissolver da personalidade.

A vida fica-lhe sempre dividida em antes e depois do instante em que manifesta o desejo de se lançar à conquista seja do que for, antes e depois que se equacionam numa igualdade cuja solução é estar sempre com « a mala aberta esperando a arrumação adiada » (Campos, 478).

A mala é o simbolo da arrancada para a viagem da vida ; é a condição indispensável sem a qual não se pode partir ; é a desculpa de Pessoa para não partir ; é a confissão do abandono total de todo o esforço que vem pôr a nu a verdade do poeta. Ele tem desejo de partir mas não tem vontade e assiste-se à oscilação do « ter de ir » arrumar a mala e do « ir definitivamente » fazê-lo, sem que, no entanto, ela fique de facto arrumada. Ele, a mala-homem que ele é, nunca estabeleceu uma ordem, fosse qual fosse a distribuição dos pensamentos ou das volições dentro do espaço de si próprio, a não sera ordem da desordem e da perturbação. Lutando entre as unidades finito-infinito, sente-lhes a antinomia, mergulha no tempo, cansa-se, reduz a vida ao absurdo e nunca há-de arrumar seja o que for.

No entanto, o retardar constante a que submete a acção da sua vida não deixa de o perturbar e procura convencer-se, à custa de repetições, que os adiamentos sucessivos a que se vai entregando são inaceitáveis. Insiste sempre :

Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,

A mala.

[Campos, 478]

A intenção de ordenação da vida atormenta-o ao ponto de o abalar profundamente : « O facto é que neste momento atravesso um período de crise da minha vida. Preocupa-me quotidianamente a necessidade de dar ao conjunto da minha orientação, tanto intelectual como « existente na vida », uma linha metódica e lógica. Quero disciplinar a minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de « forças vivas » em acção, conflito e evolução, interconexa e divergente » (CACR). Pessoa até chega ao ponto de pretender uma classificação e sistematização de emoções – « Metam-me em gavetas essas emoções » (Campos, 443) – e no seu desejo de arrumação ergue-se numa vontade que se adivinha não passar unicamente do pensamento e do papel :

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, heide arrumá-la e fechá-la ;

Heide vê-la levar de aqui,

Heide existir independemente dela.
[Campos, 478]

Porque há-de existir sempre desligado de si próprio. Há-de viver sempre « sentado sobre o canto das camisas empilhadas », numa comodidade de nunca pensar em partir porque assim nada haverá a ordenar :

Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas

(…) Não há que fazer nada

Na véspera de não partir nunca.

[Campos, 495]

São de Campos estes arremedos de vontade cansada. Pessoa já não se mascara por trás de nehum imperativo ; antes, coerentemente, numa tristeza-de-braços-caídos :

Desfaze a mala feita para a partida !
Chegaste a ousar a mala ?
[Inédito, 713]

Para quê ousá-la ? Fernando Pessoa não ousa nada. Instala-se numa imobilidade sinónima de indiferença, senta-se : « Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado » (Campos, 455). Irmão gémeo de Sá-Carneiro que queria ficar na cama até criar bolor, suplica : « Deixe-me estar aqui, nesta cadeira / Até virem meter-me no caixão » (Campos, 439) no entorpecimento permanente de quem não quer escolher nem actuar.

Noite sempre p’lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor! …

Sim : ficar sempre na cama, nunda mexer, criar bolor –

P’lo menos era o sossego completo … História ! era o melhor das vidas …

[Mario de Sa-Carneiro, Poesias]

Como já tivera um vago desejo de arrumar malas, tem agora, também uma ânsia longínqua de fazer qualquer coisa – « … poder levantar-me desta poltrona … » (Campos, 466) – mas qualquer anseio do poeta é tão falho de vontade, que, melancolicamente, ele se despe de características humanas e se coisifica, negando-se o valor superior a qualquer objecto perdido em qualquer lado, onde qualquer pessoa, por qualquer acaso, o entronre. É o esmagamento de todo o processo volitivo:

(…) a impressão, um pouco inconseqüente,
(…) De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,

Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ia sentar em cima.
[Campos, 481]

A melancolia de frustrado que ressalta destes versos não constitui motivo para ele não deixar de se instalar numa cadeira. Vai construindo, verso a verso, a sua mágoa de abúlico e lembra dolorosamente «a esteira em que a sua vida jaz » (Inédito, 556). Pessoa falha por um afastamento de movimentos volitivos, anestesiando-se com o fazer nada da cadeira da vontade em que se sentou. A apatia leva-o a aderir à afirmação cómoda mas trágica da sua morte.Mala, gaveta, cadeira ou poltrona – nada mais que expressões de abulia do homem que também ficou solitário por inactividade.

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

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