É talvez demasiado fácil afirmar que Pessoa é um arredado da felicidade porque não quer partir para a acção, uma vez que se apercebe da falência de todos os esforços para atingir a verdade. Qual verdade ? O poeta ignora-a. Pessoalmente, não se conhece. – « Sabes quem sou ? Eu não sei » – ou só se apreende deconexamente como uma colecção de « tempos seres ». O sentido do mundo exterior e objectivo também se lhe escapa. Ele é o ignorante dos princípios que justificam a existência e a ignorância é um ingrediente da sua solidão.
O desconhecimento dele e da vida traduz-se em imagens que nem são pessoais nem obsessivas mas que, no entanto, citaremos.
Estrada e caminho (que aparecem com mais frequência nas poesias não revistas pelo autor) vão ter a dupla significação de realização pessoal e de caminho que se atravessa. Em ambos os vocábulos está implícita uma ideia de passagem.
A vida terrena, na crença ocultista de certas poesias e cartas, não é mais do que uma transitoriedade para um além. A vida é « uma viagem que os outros fazem para se distrair » e que o poeta acha « grave » e « cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir no que diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos .. » (CACR) A morte é o que lhe permite entrar no « silência da grandeza de Deus », é uma espécie de limiar ; « a morte é a curva da estrada / Morrer é só não ser visto » (Cancioneiro). A estrada é o espaço de tempo percorrido entre o nascer e o morrer.
O devir constante dos estados de alma e, portanto, o sentido perecivel de todas as graduações de pensamento ou sentimento, levam Pessoa a usar, também, as imagens de estrada e caminho, sítios de passagem de uma vivência para outra, vivências que de minuto a minuto são diversas.
Na profusão e na complicação de todos os processos de ser e de pensar, o poeta não sabe que caminho tomar no « entroncamento / chamado o mundo ». Eternamente no « bifurcar dos caminhos », tem a attitude de quem não se responsabiliza porque nada escolhe. Admite que há sempre um processo a seguir e que todos os modos de construção de vida se encontram em potência nele :
Ah ! os caminhos estão todos em mim.
Qualquer distância ou direcção, ou fim
Pertence-me, sou eu.
[Inéd., 560]
Mas, não sabendo por onde deve trilhar – porque não opta – numa atitude que lhé é bem familiar, senta-se ao lado da vida, cansado dela própria.
É a constante conduta do homem sem vontade : pretende actualizar uma omnisciência e essa percepção abstracta toma-a ele como justificação da abulia, quando, afinal, os « caminhos » ou o « entroncamento » não passam de expressões dessa mesma abulia.
No Chevrolet emprestado, a caminho de Sintra onde quer chegar mas sabendo antecipadamente que, quando chegar, terá pena de ter deixado Lisboa, numa permanente inquietação de quem sabe o que não quer e de quem não sabe o que quer, assim o poeta é sempre « na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida … »
Na sua concentração excessiva descobre-se no caminho separado nos desejos e em tudo. Fluindo hoje diferentemente do que foi ontem, na impossibilidade de apreensão de uma unidade – « No meu próprio caminho me atravesso / Não conheço quem fui no que hoje sou » (Cancioneiro) – nunca Pessoa se encontra com Pessoa nas repostas às perguntas que qualquer um deles formula e a que nenhum responde. O desfasamento com o mundo que o cerca começa por ser um desfasamento interior de alguém que segue « por dois caminhos par a par » O seu processo gnoseológico só capta bocados na « estrada da (sua) dissonância ». E também apreende o legado da vida – « O esquecimento temporário, a estrada / Por engano tomada / O meditar na ponte e na incerteza » (Inéd.) – e tudo o que faz dele um homem torturado : a falta de unidade, o cansaço sinónimo de abulia – « Sento-me à beira da estrada / Cansado já no caminho » – , o aniquilamento – « E ficar morto na erma estrada / Que vai da alma ao coração » –, o desconhecimento de tudo – « Eu também sou um cego / Cantando na estrada » –, a ilusão – « Se ver é enganar-me / Pensar um descaminho / Não sei. Deus os quis dar-me / Por verdade e caminho » – e a solidão :
No Chevrolet emprestado, a caminho de Sintra onde quer chegar mas sabendo antecipadamente que, quando chegar, terá pena de ter deixado Lisboa, numa permanente inquietação de quem sabe o que não quer e de quem não sabe o que quer, assim o poeta é sempre « na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida … »
Na sua concentração excessiva descobre-se no caminho separado nos desejos e em tudo. Fluindo hoje diferentemente do que foi ontem, na impossibilidade de apreensão de uma unidade – « No meu próprio caminho me atravesso / Não conheço quem fui no que hoje sou » (Cancioneiro) – nunca Pessoa se encontra com Pessoa nas repostas às perguntas que qualquer um deles formula e a que nenhum responde. O desfasamento com o mundo que o cerca começa por ser um desfasamento interior de alguém que segue « por dois caminhos par a par » O seu processo gnoseológico só capta bocados na « estrada da (sua) dissonância ». E também apreende o legado da vida – « O esquecimento temporário, a estrada / Por engano tomada / O meditar na ponte e na incerteza » (Inéd.) – e tudo o que faz dele um homem torturado : a falta de unidade, o cansaço sinónimo de abulia – « Sento-me à beira da estrada / Cansado já no caminho » – , o aniquilamento – « E ficar morto na erma estrada / Que vai da alma ao coração » –, o desconhecimento de tudo – « Eu também sou um cego / Cantando na estrada » –, a ilusão – « Se ver é enganar-me / Pensar um descaminho / Não sei. Deus os quis dar-me / Por verdade e caminho » – e a solidão :
Que ao menos na estrada me sorria alguém
Ainda que por acaso.
[Inéd., 605]
[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]
No comments:
Post a Comment