Sunday, December 21, 2008

A Água ou a Vida e a Morte

Photo de Corinna Rosteck

Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares.
[Álvaro de Campos]

A poética de Fernando Pessoa é atravessada tão insistentemente por um elemento líquido, que não nos podemos manter alheios à frequencia com que a água brota dos seus versos. E ela aparece de todos os modos: a água-elemento, a água precipitada em humidade, orvalho, chuva ou neve; concretizada na hidrografia-oceano, mar, rio, catarata, regato, lago, charco. Ela banha espaços - praia, cais, porto, doca, ilha, cabo, margem - banha mesmo lugares geográficos, é atravessada por outros espaços - instrumentos - naus, navios, paquetes, barcos, - é suicada por homens ligados ou não à vida do mar - marinheiros, gajeiros, pilotos, capitães, piratas, tripulantes; vive em verbos - correr, passar, embarcar, naufragar, banhar, navegar.
É uma água que pode ser parada ou dinâmica, desejada, aceite, triste, profunda. Só não é contente, nem viva em transparente. Mesmo a fonte, lição de energia e juventude, quando aparece é para secar no momento exato em que o poeta pensa matar nela qualquer sede:

Onde pus a afeição, secou
A fonte logo.
Da floresia, que fui buscar
Por essa fonte ali tecer
Seu canto de rezar -
Quando na sombra penetrei,
Só o lugar achei
Da fonte séca, inútil de se ter.
(Canc. 82)

Para que experiencias oniricas é transportado Fernando Pessoa através da água para tão insistentemente a invocar? Que segredos escondidos o movem para lhe determinarem tal dialéctica, por vezes metalôgica? Vários são os estímulos, conscientes ou inconscientes, conforme a água escolhida e que dependem da sua sede sem nome e sem mitigação. A morte consciente do dia a dia, a morte transportada dentro de si, a fonte primeira da vida, são traduções da água de Pessoa.
[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

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