Sunday, December 21, 2008

Fernando Pessoa - poesia e metafísica


Heidegger diz algures que o poeta e o filósofo habitam montanhas muito próximas separadas por profundo abismo. Seria difícil caracterizar esta proximidade e esta separação. Poesia não é filosofia e filosofia não é poesia. A poesia move-se num campo de liberdade espiritual vedado à filosofia; esta, no seu modo austero, parece alheia aos sentimentos mais fundos da vida humana. Enquanto a poesia voa livre e cria o seu próprio movimento e até a própria verdade, a filosofia pretende cingir-se ao real, ser ciência da ultimidade, dos princípios inteligíveis do ser. Poesia e Filosofia opõem-se pela forma de pensamento e de expressão. E contudo a grande poesia, mesmo quando explicitamente não trabalha sobre motivos filosóficos, traz à luz a verdade dos grandes temas humanos. Será sem verdadeiro alento e sem resistência para a doença do tempo aquela poesia que não levar dentro as magnas preocupações dos homens. E aquela filosofia que não for portadora de vida e não suscitar as capacidades humanas de criar imagens e símbolos, não faz história.
Fernando Pessoa é, talvez, o poeta de língua portuguesa em que a poesia e a filosofia mais se aproximam apesar do abismo que as separa, o que sugere várias considerações que parecem merecer atenção. Em primeiro lugar, uma questão de linguagem. O escritor que é poeta, e grande poeta, dá à língua em que se exprime uma ductilidade e maleabilidade que a torna apta para exprimir o pensamento. Um estudo da linguagem de Fernando Pessoa mostraria possibilidades expressivas da língua portuguesa, no domínio da ontologia metafísica, como não conheço em nenhum outro escritor que fale português. Não é minha intenção documentar agora esta afirmação. Em segundo lugar, penso ser caso único na literatura portuguesa, que o tema-base da obra poética de um grande autor seja a meditação metafísica sobre o ser. Creio até, e nisto nos detemos adiante breves momentos, que este é o centro da interpretação de toda a obra pessoana. Interpretação que não só projecta luz sobre a questão tão debatida dos heterónimos, mas sobretudo abre o acesso para a compreensão da temática poético-filosófica de F. Pessoa.

[Celestino Pires
in Revista Portuguesa de Filosofia de Julho-Setembro de 1975]

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