Friday, December 26, 2008

A água (2)

[Photo Corinna Rosteck]

A água é um simbolo materno porque dela a natureza se alimenta; ela é o leite da terra inteira. A água do mar, enriquecida pela acção vital dos seres microscópicos que contém, é uma água animal, um primeiro elemento. O mar é um lugar cósmico, anónimo, de onde toda a vida saiu; "c'est pourquoi C.G. Jung voit en elle le symbole par excellence de l'inconscient collectif, à savoir ce qui, dans nos souvenirs, dépasse le monde de l'enfance et même les fantaisies de retour au sein maternel, pour rejoindre les structures archaiques pré-uterines communes à l'espèce, sinon à beaucoup de formes de vie." (Raymond de Becker, Le sexe n'est pas la seule clé) "The sea: the mother of all life."
Além de alimentar, a água embala; é o unico elemento que tem a propriedade de ritmadamente marcar um movimento que fala ao coração, "c'est le mouvement presque immobile, bien silencieux. L'eau nous porte. L'eau nos endort. L'eau nous rend notre mère." (Gaston Bachelard, L'eau et les rêves)
Sentimentalmente, portanto, a água é uma projecção da mãe; "la mer est pour les hommes l'un des plus grans, des plus constants symboles maternels."(ibid). Venerar é respeitar a infinitude e a majestade do mar, elemento que preside à essência da vida, é dar um sentido objectivo à infinitude do amor pela mãe.
Compreende-se agora porque é que o mar, mais uma vez, eleva à categoria de simbolo. Na poética do Álvaro de Campos sensacionista, o mar tem a força de um adversário com quem é obrigatório medir-se; todos os outros têm a tranquilidade que se vai fundir com um regresso ao seio materno, a uma existência uterina. O simples facto de Álvaro de Campos escolher o mar para ilustrar uma determinada teoria poética, e não optar, por exemplo, pela tempestade a que se segue a calmaria ou por uma paisagem terrena de montanhas e vales, é só por si uma acusação: é o testemunho duma tendência inconsciente que Pessoa tem para eleger uma água que só é um espcectáculo consciente depois de ter sido uma experiência onírica.

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa]

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