Saturday, January 17, 2009

O ar


O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia de Cousa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

[F. Pessoa, Cancioneiro]

O dinamismo da emoção ontológica de Fernando Pessoa vai eleger, também, como símbolo, um outro elemento material. Desta vez é no ar que o universo imaginário do poeta integra os sonhos com que constrói o tempo, os versos e a vida. Nem só a água testemunha a fidelidade ao seu movimento íntimo substancial; nem só na realidade da more lenta do devir hídrico ou no reconhecimento de um Mar-vida, integra a sintaxe de imagens sinónimas de uma acusação. Dado que a ele, como a qualquer ser humano, está impossibilitada uma horizontalidade de vida, o poeta tende, por impulso congénito e inamovível, para uma verticalidade, para um destino de grandeza e elevação. O ar é o elemento material fundamental dessa ascensão. Substância sem qualidades substanciais, sublimação evasiva de todas as imagens de desmaterialização, acção sem forma, fenómeno de repouso e de leveza, voo onírico, levitação, imaginária que acolhe todas as metáforas da grandeza humana, o ar é a libertação do mundo, uma mobilidade serena, um processo catártico que Pessoa facilmente encontra. Opõe-se à água-morte por ser plenitude e assim continua a água-vida. ‘Il réalise le superlatif du bonheur bercé : le bonheur porté.’ (G. Bachelard, l’air et les songes).

Na obra de Fernando Pessoa temos vários modos de captar a sua vocação ascensional através das objectivações poéticas que o ar toma mas em que nunca se cristaliza : o vento, a brisa, o som, o jogo de luz e sombra, o voo, a nuvem, o céu, o céu azul, a própria fluência da linguagem poética, mas, sobretudo, a noite.

Pela frequência recorrencial a estes jogos de palavras e imagens e pela sua carga poética, adivinhamos a tendência íntima para a eleição deste elemento e concluímos que Pessoa fez de si o abraço intimo e indestrutível da água-ar, na constante chamada para o abismo que é na morte e no constante apelo para o alto que é a vida.

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa]

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