A ignorância é, como vimos, uma das verdades que o poeta possui. Outra é a ilusão. O duplo jogo da verdade que observa na vida perturba-o e vincula mais fortemente a sua crença no erro do existente.
« Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham tôda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão” (Obra Poética).
Que concluir daqui?
« Tudo é ilusão.
A ilusão do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo é criação é ilusão.
Criar é mentir.
Para pensar o não-ser criámo-lo, passa a ser uma coisa.
Todos os que pensam ocultistamente criam em absoluto todo um sistema do universo, que fica sendo real. Ainda que se contradigam: há vários sistemas do universo, todos eles reais.
Nós próprios, porque existimos, somos criações também, portanto ilusões. Mas somos criações de quem ? Do Deus que nós próprios criámos ? Como se o criámos nós, e lhe somos portanto anteriores ? Isso é supondo real o tempo, que é outra criação nossa. Tudo é um amontoado de ilusões.
Aquilo que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é. Mas o que é, é ilusão. Por isso é verdade é a ilusão, é uma ilusão » (Textos Filosóficos)
Nós próprios, porque existimos, somos criações também, portanto ilusões. Mas somos criações de quem ? Do Deus que nós próprios criámos ? Como se o criámos nós, e lhe somos portanto anteriores ? Isso é supondo real o tempo, que é outra criação nossa. Tudo é um amontoado de ilusões.
Aquilo que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é. Mas o que é, é ilusão. Por isso é verdade é a ilusão, é uma ilusão » (Textos Filosóficos)
Esta crença é vulgar num momento histórico em que os homens começam a compreender a fragilidade de ideologias éticas e morais. Fernando Pessoa é mais um nome a dar forma ao vazio e à instabilidade das consciências abaladas. É igual a voz de Pirandello, homem do mesmo momento histórico:
“… se tornar a pensar em todas aquelas ilusões que, agora, já não lhe « parecem » o que éeram » naquele tempo para si, não sente faltar-lhe já não digo estas tábuas do palco – mas o próprio chão debaixo dos pés? E não chegará à conclusão de que, da mesma maneira, toda a sua realidade de hoje, tal como é, está condenada a parecer-lhe ilusão amanhã ? » (Luigi Pirandello, Seis personagens em busca de autor)
A facilidade com que sobre isto pensa e com que se entrega ao fingimento de estados de alma, pretendendo que todos são reais, é um derivativo da sua convicção no engano, e portanto, da descrença na estabilidade do ser e do pensar. Como corolário da tese da ilusão, as imagens cénicas do poeta : reduz o mundo ao espaço de um palco onde nos vamos exibindo e onde cada um de nós é o fantoche de si próprio.
« La vérité sur la scène, c’est tout ce en quoi l’acteur peut croire avec sincérité » (C. Stanislavsky, La formation de l’acteur) e se a verdade, na cena que Pessoa ergue ou vê erguida, é uma verdade feita de mimos, bobos, palhaços, saltimbancos e máscaras, é nessa que ele acredita e, consequentemente, terá de conceber o mundo com a falácia que o teatro empresta à vida. « A nossa vida é palco e confusão », é um conjunto desagregado e nem os deuses, nem a tradição têm a coesão que os homens lhe emprestam. Limitada ao espaço de um palco ou de uma feira ; limitada ao circo do correr dos dias, o homem desempenha um papel, no caso do poeta conscientemente, na generalidade sem conhecimento – o que o poeta desejaria !
« Somos todos palhaços estrangeiros », « actores de convenções e poses determinadas », na cinematografia em que nos encontramos empenhados « A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos » ; o nosso símbolo é uma última esperança e uma última ilusão que « Não significam nada / Mimos e bobos são ».
« Somos todos palhaços estrangeiros », « actores de convenções e poses determinadas », na cinematografia em que nos encontramos empenhados « A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos » ; o nosso símbolo é uma última esperança e uma última ilusão que « Não significam nada / Mimos e bobos são ».
O jogo teatral não é só drama do exterior ou da vida dos outros. O poeta vive-o dentro de si. Confessa-o a desenrolar-se no quotidiano – « … tenho passado com razoável calma pela ilusão sucessiva dos dias” (CACR) – confessa-o a desnerolar-se no seu próprio coração – « Meu coração é um enorme estrado » – ou na sua alma a que falta sempre qualquer coisa como se se tratasse de « um palco deserto », sem personagens, sem movimento, sem princípio vital. Sustentado por ilusões, quando a representação acaba, finda como ela tudo o que foi sonho – e foi a vida toda…
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
(Cancioneiro)
Pessoa e Campos « figuram as coisas e a vida, a própria existência e as sensações, pelas metáforas de comédia, tragédia, sendo elas todas manifestações de realidades aparentes e ilusórias que disfarçam a realidade absoluta do universo e da alma humana. O fingimento torna-se a pose habitual do homem, porque a capacidade de conhecer-se é restrita, se não fora de alcance. A alma, objectivo do conhecimento, traz camada sobre camada de máscaras inseparáveis. Só um homem excepcional como Fausto conseguiu largar uma vez todas as máscaras, viu o fundo da alma e ficou horrorizado pela verdade descoberta » (Rainer Hess, As metáforas cùenicas na obra de Fernando Pessoa) – « Bebi a taça … do pensamento / Até ao fim ; reconhecia-a pois / Vazia, e achei horror ».
[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]
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