Wednesday, March 25, 2009

O Espaço ou a Solidão (10) O conteúdo da mala


Por carácter, Fernando Pessoa também está só. A sua maneira de ser leva-o a uma falta de jeito para a convivência e reforça-lhe a solidão. Voltado para si, « intro-absorvido », chegando ao exagero de afirmar : « Amo-me por ter escrito « Ah, poder ser tu, sendo eu ! / Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso »(CACR) e, por outro lado, conhecendo-se como homem de excepção, afirma que est´só :

« … e, dos que de perto literariamente me cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como ALMAS, propriamente não contam … »
« Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que BATA CERTO com a minha intima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu intimo ser espiritual. Econtro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenos dos arredores da minha sinceridade ». (CACR)

Como se estas características não bastassem para determinarem uma espécie de solidão, acrescente-se ainda um retraimento natural que toca as raias da vergonha, um horror de se dar a conhecer, um sentido do secreto altamente acentuado que o levam a manter a inviolabilidade do seu território.

Em vários momentos da sua poética se patenteia a repugnância em se mostrar e até o Campos sensacionista que diz ser um universo, o complexo das coisas criadas, experimentadas e pensadas, assim se define :

Trago dentro do meu coração, Como num cofre que não se pode fechar de cheio, Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei …
(Campos)

O sentido de camuflado parece abandonar a imagem que o poeta usa mas nela está realmente implícita a intimidade. O que é, afinal, esse conjunto de lugares ? É a vivência do poeta ou o que ele quer que seja essa vivência. É o seu ser, a sua interioridade desdobrada para o exterior, uma pretensa extroversão que vai até a um grau infinito de tempo e espaço. Por insuficiência de cálculo, não podemos apreender esse ponto de chegada loge, escapa-se nos o intimo do poeta. « Nous n’arrivons jamais au fond du coffret. Comment mieux dire l’infinité de la dimension intime ? » (Gaston Bachelard, La poétique de l’espace).

Também não é casualmente que a palavra « mala » passa de acidente de expressão a pensamento constante de determinada trajectória do Pessoa-Campos. O conteúdo psíquico desse vocábulo é revelador do segredo que o poeta quer guardar só para si. A mala pessoal é um espaço que não se franqueia a qualquer um, um espaço de intimidade, um ponto de convergência de interioridade, um esconderijo que é a própria vida :

Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas.
(Campos, 478)

O nosso trabablho de penetração cessa se quisermos saber qual o contéúdo do cofre ou da mala e assim ele salvaguarda o seu mundo, que cerca de grandes muros.

Cessa também se quisermos saber como é a casa de infância. Pessoa nunca a descreve, porque dar conhecimento dos seus recantos intimos seria um pouco violar-se a si próprio.

Inviolável e só está o poeta sempre, não na formulação dos problemas mas na acuidade com que percepciona e indaga o que lhe é dado pensar.
A sua condenação sabe ele qual é :

Estou prêso ao meu pensamento Como o vento prêso ao ar.
(Cancioneiro, 134)

A pensar, o poeta perde-se na “dolorosa instabilidade e incompreensibilidade / Deste impossivel universo » e no labirinto que é, soterrado pelo mistério que sobre ele ruiu.

Se vislumbra uma razão de viver, já que Deus lhe deu a missão de ser poeta – « Há um poeta em mim que Deus me disse » - acabará por descobrir afinal que « há sempre escuro dentro dele ».

Se quer percepcionar qualquer reposta aos seus anseios e às suas exigências, todas as portas se lhe abrem para a dúvida, para o mistério, para a inconsequência de si próprio, para a morte. Por vezes nem se chegam a abrir – « Fecharam-me todas as portas abstractas e necessarias”.

Se quer aderir à “alucinação extraordinariamente nítida » que é a realidade, é vítima do processo de realização que para si escolhe :

… eu, em cuja alma se reflectem As forças tôdas do universo, (…) Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sêde sem ser de água.
(Campos, 521)

[Maria da Glória Padrão, A Metáfora em Fernando Pessoa, 1981]

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